terça-feira, 22 de março de 2011

Textos orais e textos escritos

A interação pela linguagem materializa-se por meio de textos, sejam eles orais ou escritos. É relevante, no entanto, reconhecer que fala e escrita são duas modalidades de uso da língua que, embora se utilizem do mesmo sistema lingüístico, possuem características próprias. As duas não têm as mesmas formas, a mesma gramática, nem os mesmos recursos expressivos. Para a compreensão dos problemas da expressão e da comunicação verbais, é necessário evidenciar essa distinção.

Para dar início às suas reflexões, leia o texto de Millôr Fernandes, a seguir. 
 
A vaguidão específica
"As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica."
Richard Gehman

— Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.
— Junto com as outras?
— Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
— Sim senhora. Olha, o homem está aí.
— Aquele de quando choveu?
— Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.
— Que é que você disse a ele?
— Eu disse pra ele continuar.
— Ele já começou?
— Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
— É bom?
— Mais ou menos. O outro parece mais capaz.
— Você trouxe tudo pra cima?
— Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou para deixar até a véspera.
— Mas traga, traga. Na ocasião nós descemos tudo de novo. É melhor, senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite.
— Está bem, vou ver como.

FERNANDES, Millôr. Trinta anos de mim mesmo. São Paulo, Círculo do Livro, 1976, p.77. 
 
 
 
No texto, o autor revela ironia ao atribuir às mulheres o falar de modo vago e por meio de elipses. No entanto, tais características são próprias do texto oral, em que a interação face-a-face permite que os interlocutores, situados no mesmo tempo e espaço, preencham as lacunas ali existentes, já que ambos, ancorados em dados do contexto e no conhecimento partilhado que possuem, são capazes de compreender e produzir sentido ao que se diz.
Em nossa sociedade, fundamentalmente oral, convivemos muito mais com textos orais do que com textos escritos. Todos os povos1, indistintamente, têm ou tiveram uma tradição oral e relativamente poucos tiveram ou têm uma tradição escrita. No entanto, isso não torna a oralidade mais importante que a escrita. Mesmo que a oralidade tenha uma primazia cronológica sobre a escrita, esta, por sua vez, adquire um valor social superior à oralidade.
A escrita não pode ser tida como representação da fala. Em parte, porque a escrita não consegue reproduzir muitos dos fenômenos da oralidade, tais como a prosódia, a gestualidade, os movimentos do corpo e dos olhos, entre outros. Ela apresenta, ainda, elementos significativos próprios, ausentes na fala, tais como o tamanho e o tipo de letras, cores e formatos, sinais de pontuação e elementos pictóricos, que operam como gestos, mímica e prosódia graficamente representados.
Observe a transcrição de um texto falado, retirado de uma aula de História Contemporânea, ministrada no Rio de Janeiro, no final de década de 70. Procure ler o texto como se você estivesse “ouvindo” a aula. 


... nós vimos que ela assinala... como disse o colega aí,,, a elevação da sociedade burguesa... e capitalista... ora... pode-se já ver nisso... o que é uma revolução... uma revolução significa o quê? Uma mudança... de classe... em assumindo o poder... você vê por exemplo... a Revolução Francesa... o que ela significa? Nós vimos... você tem uma classe que sobe... e outra classe que desce... não é isso? A burguesia cresceu... ela ti/a burguesia possuía... o poder... econômico... mas ela não tem prestígio social... nem poder político... então... através desse poder econômico da burguesia... que controlava o comércio... que tinha nas mãos a economia da França... tava nas mãos da classe burguesa... que crescera... desde o século quinze... com a Revolução Comercial... nós temos o crescimento da classe burguesa... essa burguesia quer... quer... o poder...ela quer o poder político... ela quer o prestígio social... ela quer entrar em Versalhes... então nós vamos ver que através... de uma Revolução...ela vai... de forma violenta... ela vai conseguir o poder... isso é uma revolução porque significa a ascensão de uma classe e a queda de outra... mas qual é a classe que cai? É a aristocracia... tanto que... o Rei teve a cabeça cortada... não é isso?


Dinah Callou (org.). A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro – materiais
 para seu estudo.
Elocuções formais. Rio de Janeiro, Fujb, 1991, p. 104-105.
 
 
 
 
 
É possível notar que o texto é bastante entrecortado e repetitivo, apresenta expressivas marcas de oralidade e progride apoiando-se em questões lançadas aos interlocutores, no caso, aos alunos. Isso não significa que o texto falado é, por sua natureza, absolutamente caótico e desestruturado. Ao contrário, ele tem uma estruturação que lhe é própria, ditada pelas circunstâncias sociocognitivas de sua produção.

No entanto, tais características, próprias do texto oral, são consideradas inapropriadas para o texto escrito. E por quê?

Para entender essa questão, inicialmente, faz-se necessário observar a distinção entre essas duas modalidades de uso da língua, proposta por Marcuschi (2001:25):
  • A fala seria uma forma de produção textual-discursiva para fins comunicativos na modalidade oral. Caracteriza-se pelo uso da língua na sua forma de sons sistematicamente articulados e significativos, bem como os aspectos prosódicos e recursos expressivos como a gestualidade, os movimentos do corpo e a mímica.

  • A escrita, por sua vez, seria um modo de produção textual-discursiva para fins comunicativos com certas especificidades materiais e se caracterizaria por sua constituição gráfica, embora envolva também recursos de ordem pictórica e outros. Pode manifestar-se, do ponto de vista de sua tecnologia, por unidades alfabéticas (escrita alfabética), ideogramas (escrita ideográfica) ou unidades iconográficas. Trata-se de uma modalidade de uso da língua complementar à fala.
De modo geral, discute-se que ambas apresentam distinções porque diferem nos seus modos de aquisição, nas suas condições de produção, na transmissão e recepção, nos meios através dos quais os elementos de estrutura são organizados.
Para Koch (1992), dentre as características distintivas mais freqüentemente apontadas entre as modalidades 
 
 
 
Fala
Escrita
1. Contextualizada.
2. Não-planejada.
3. Redundante.
4. Fragmentada.
5. Incompleta.
6. Pouco elaborada.
7. Predominância de frases curtas, simples ou coordenadas.
8. Pouco uso de passivas.
9. Pouca densidade informacional.
10. Poucas nominalizações.
11. Menor densidade lexical.
1. Descontextualizada.
2. Planejada.
3. Condensada.
4. Não-fragmentada.
5. Completa.
6. Elaborada.
7. Predominância de frases complexas, com subordinação abundante.
8. Emprego freqüente de passivas.
9. Densidade informacional.
10. Abundância de nominalizações.
11. Maior densidade lexical.
 
 
 
 
 
Ocorre, porém, que essas diferenças nem sempre distinguem as duas modalidades. Isso porque se verifica, por exemplo, que há textos escritos muito próximos ao da fala conversacional (bilhetes, recados, cartas familiares, por exemplo), e textos falados que mais se aproximam da escrita formal (conferências, entrevistas profissionais, entre outros). Além disso, atualmente, pode-se conceber o texto oral e o escrito como atividades interativas e complementares no contexto das práticas culturais e sociais.

Oralidade e escrita, assim, são práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas lingüísticos distintos. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações estilísticas, sociais e dialetais.

Cabe lembrar, finalmente, que em situações de interação face a face, o locutor que detém a palavra não é o único responsável pelo seu discurso. Trata-se, como bem mostra Marcuschi (1986), de uma atividade de co-produção discursiva, visto que os interlocutores estão juntamente empenhados na produção do texto.
 
 

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